sábado, 9 de abril de 2011

De Ucho Haddad


De frequentador de zona a crítico dos juros altos, José Alencar está a
caminho da canonização.


No Brasil, a exemplo do que ocorre em boa parte do planeta, exigir
coerência no mundo político é a mais hercúlea das tarefas. Quiçá não seja
uma empreitada completamente impossível. Quando um político passa para o
outro lado da vida, se é que isso de fato existe, suas mazelas  chegam à
sepultura muito antes do cadáver. O mau vira bom, o desonesto vira
honesto, o implacável vira um coitado.. Sem querer duvidar da sua
honestidade, esse cenário já recobre a morte de José Alencar Gomes da
Silva, vice-presidente da República nos dois mandatos de Lula da Silva
(2003-2010), que morreu em São Paulo após mais de uma década de luta
contra um câncer abdominal.

Tão logo subiu a rampa do Palácio do Planalto pela primeira vez, José
Alencar não demorou a tecer suas críticas contra as altas taxas de juros.
Mal sabia Alencar que os banqueiros derramaram verdadeiras fortunas na
campanha de Lula e ao incauto povo brasileiro cabia pagar a conta. Como
cabe até hoje. E o esperneio discursivo do empresário José Alencar pouco
adiantou. Fosse um homem coerente, Alencar teria alcançado o boné e
renunciado. Só não o fez por conta de interesses maiores.

Ano e meio depois de tomar posse ao lado de Lula, o simpático José Alencar
adotou obsequioso silêncio diante do escândalo que ficou nacionalmente
conhecido como Mensalão do PT, esquema criminoso de cooptação de
parlamentares que trocaram a consciência por um punhado de dinheiro
imundo. É verdade que todos são inocentes até prova em contrário, mas no
PT de outrora rezava a regra de que para condenar alguém bastavam apenas
evidências. A profecia é de autoria de José Dirceu de Oliveira e Silva, o
Pedro Caroço, figura com a qual José Alencar conviveu sem qualquer
reserva.

O agora santificado José Alencar apostou nas palavras do companheiro Lula,
que certa vez disse com todas as letras que a China é uma economia de
mercado. Certo de que o parceiro palaciano sabia das coisas, Alencar
deflagrou um processo para abrir uma unidade de seu conglomerado têxtil no
país da lendária muralha. Mesmo com o Brasil sofrendo há anos a
concorrência desleal dos fabricantes chineses de tecidos e afins, Alencar
exigiu que o projeto fosse cumprido à risca. E o mercado brasileiro de
tecidos, que deveria ser defendido pelas autoridades verde-louras e também
pelo então vice-presidente, foi mandado às favas inclusive por José
Alencar.

Por ocasião da CPI dos Correios, que acabou investigando a fonte de
financiamento do Mensalão petista, o nome da Coteminas veio à baila, pois
a empresa de José Alencar recebeu em uma de suas contas bancárias um
depósito de R$ 1 milhão feito pelo PT. Alencar, que logo tratou de isentar
de qualquer culpa o seu conglomerado empresarial, alegou que as
explicações deveriam ser cobradas do próprio PT. A operação, segundo José
Alencar, decorreu do fornecimento de 2,75 milhões de camisetas aos
candidatos petistas nas eleições municipais de 2004. O então presidente
nacional do PT, Ricardo Berzoini, informou a José Alencar, horas depois da
eclosão do escândalo, que o repasse à Coteminas não foi contabilizado pelo
partido. A dívida, de R$ 12 milhões, correspondia à época a 50 carretas
abarrotadas decamisetas. Para contemplar as necessidades de Lula e
Alencar, o caso foi devidamente abafado.

Guindado ao Ministério da Defesa por decisão de Lula, o empresário José
Alencar viu a sua Coteminas vender cada vez mais uniformes para o Exército
brasileiro. Coincidência? Talvez, mas na política essa palavra não existe
no dicionário. Em 2006, ao aceitar o convite para novamente fazer dupla
com Lula da Silva, José Alencar acabou por endossar o Mensalão e outros
tantos escândalos de corrupção patrocinados pelo Partido dos Trabalhadores
e por muitos palacianos. Na ocasião eclodiu o escândalo do Dossiê Cuiabá,
conjunto de documentos apócrifos para prejudicar os então candidatos
tucanos Geraldo Alckmin e José Serra. Mais uma vez, diante de um novo
escárnio com a digital da esquerda brasileira, Alencar preferiu submergir.

No quase infindável imbróglio da Varig, coube a José Alencar aproximar o
empresário Constantino Oliveira, o nada diplomático Nenê, do presidente
Lula, que implorou para que o dono da Gol comprasse a outrora mais
importante companhia de aviação do País. Muito estranhamente, Nenê
Constantino, tão mineiro quanto José Alencar, atendeu aos apelos de Lula e
arrematou a Varig por US$ 300 milhões, uma empresa que estava resumida à
própria marca. Até hoje ninguém conseguiu entender a transação que nem
mesmo o mais incauto investidor seria capaz de apostar suas economias, mas
o universo do poder tem essas situações inexplicáveis.

Em agosto de 2010, ao ser entrevistado pelo apresentador Jô Soares, o nada
elegante José Alencar aceitou falar sobre o processo de investigação de
paternidade que lhe movia Rosemary de Morais, sua suposta filha, e a
recusa em se submeter a um teste de DNA. Ao apresentador global o agora
bonzinho José Alencar repetiu o que disse à Justiça. Que a mãe de sua
suposta filha era prostituta e que ele [José Alencar] foi um frequentador
contumaz das zonas de meretrício das cidades onde morou desde jovem. Ao
expor a mãe da sua suposta filha de forma tão covarde e aviltante, José
Alencar não apenas escancarou o seu caráter, mas mostrou ao mundo ser ele
alguém bem diferente daquele que hoje, após a morte, a consternada
população brasileira tenta canonizar.

Ter pena de José Alencar por conta da sua luta contra o câncer não causa
espanto. Mas há milhares de brasileiros na mesma situação de Alencar e que
lamentavelmente dependem do sistema público da saúde para lutar contra a
morte. Esses sim são bravos lutadores, dignos de pena e do respeito
incondicional de todos. Em momento algum quero festejar a morte de alguém,
até porque esse é o tipo de atitude que não se toma nem mesmo com os mais
figadais inimigos, mas não se pode alçar aos céus com tanta rapidez quem
ainda tem contas a acertar com o Criador.

De igual maneira, a minha manifestação não se trata de moralismo
oportunista, mas serve como apelo aos brasileiros para que releiam a
recente história política nacional e que mantenham a coerência no momento
em que mais um político se despede da vida terrena. Errar é humano, é
verdade, mas o erro pontual pode ser transformado em plataforma de acertos
futuros se o errante tiver um mínimo de massa cinzenta. Como sempre
escrevo, digo e não canso de repetir, sou o melhor produto dos meus
próprios erros. Ainda bem! E é por isso que espero que no momento da minha
morte os meus inimigos preservem a coerência e mantenham as críticas que
me fizeram ao longo da vida. Só assim descansarei em paz, ciente de que
mesmo longe dessa barafunda continuarei coerente e incomodando.

O meu finado pai, que tantos bons exemplos me deixou, por certo não
encontrou minha mãe na zona mais próxima, mas os que me odeiam podem
continuar me chamando de “filho da puta” O genial Jânio Quadros dizia que
o melhor é se referir ao desafeto como “filho de puta” com a anuência da
minha respeitadíssima genitora. Fora isso, é preciso considerar que, assim
como acontece com os árbitros de futebol, jornalistas políticos polêmicos
sempre têm uma mãe sobressalente para os costumeiros e inevitáveis
xingamentos.

E que o Criador escute as minhas preces e dispense ao ser humano José
Alencar o tratamento devido, pois a sua luta pela vida foi inglória.
Amém!
(*) Ucho Haddad, 51, é jornalista, analista e comentarista político, poeta
e escritor

Nenhum comentário:

Postar um comentário